Palo Monte
A Religião dos bruxos cubanos
Nas religiões de matriz africana praticadas em Cuba, o mundo dos vivos e o dos mortos se misturam.
Um ditado bastante popular em Cuba diz que, na ilha, quem não é congo é carabalí. A consagrada menção às duas etnias africanas é uma das formas encontradas pelos locais para se referir à ascendência determinante de boa parte dos cubanos. Os traços deixados pelos antepassados vindos da África estão por toda parte: na música, nos pratos típicos, em gírias e hábitos gerais. Mas, sem dúvida, um dos vestígios mais notáveis dessa herança encontra-se na religiosidade.
Nessa dimensão da vida local, os espíritos, chamados de muertos, estão por toda parte. De acordo com as crenças religiosas de matriz africana, habitam as casas, comem da “nossa” comida (muitas vezes, sem sal, tal como gostam), marcam presença em festas, nas ruas e nas tarefas cotidianas. Compartilham, enfim, do mundo dos vivos.
Nas encruzilhadas, em parques e na porta de igrejas, os ebós, oferendas sugeridas pelos orixás e pelos muertos, são uma representação dessa proximidade. Podem ser baseados em um pedaço de carne, um ramalhete de flores ou uma abóbora untada com mel e azeite de dendê. O último ingrediente, em especial, é apreciado pelo orixá Oxum para a “limpeza de ventre” em mulheres que desejam engravidar.
Mais do que se possa imaginar, tais religiões são praticadas de diversas maneiras em Cuba. Chamadas de reglas, em referência às principais etnias e zonas geográficas de onde vieram os escravos africanos, elas ajudam a entender a pluralidade dos povos negros levados à ilha.
As reglas nada mais são do que as muitas formas de se praticar a religião afro-cubana. E são bastante difundidas. A Regla de Ocha (seu nome mais popular é santería) tem forte tradição iorubá: na configuração geográfica atual da África, seria a região da Nigéria e parte do Benin. Seus ritos assemelham-se aos do candomblé brasileiro (Ketu), daí uma forte identificação entre os religiosos daqui e de lá.
A Regla Arara tem sua origem nos escravos da chamada Costa do Ouro (atuais Benin e Togo). Há ainda a Regla de Ifá, também relacionada ao universo iorubano, terra dos babalawos, e, por fim, a Regla Conga, chamada de brujería cubana ou Palo Monte, cuja ancestralidade remete aos escravos provenientes da zona hoje identificada como baixo Congo, que engloba tanto o norte de Angola quanto o oeste da República Democrática do Congo. Em Cuba ficaram conhecidos apenas como congos.
De acordo com os historiadores, 600 mil africanos aportaram em Cuba ao longo de quatro séculos. O último barco legalizado carregado de escravos singrou os mares dessa parte do Caribe em 1867 – entretanto, é evidente que o tráfico seguiu ilegal por mais tempo. Essas pessoas vieram de diferentes zonas da África subsaariana e compuseram um mosaico cultural que, nos dias de hoje, dá corpo à atual sociedade cubana.
Evidente que outros povos tiveram importância neste processo de identidades e recriações, tais como os ibéricos, os indígenas locais e mesmo os chineses, tão presentes no imaginário religioso cubano, mas nenhum continente marcou tanto a ilha quanto a África e sua diversidade.
Além das Reglas, por toda a ilha existe a prática intensa do espiritismo, seja em sua variante kardecista (doutrina de origem européia bastante difundida no Brasil, baseada no princípio da reencarnação e da comunicação com os mortos), seja no chamado espiritismo cruzado, que une muitas das religiões de matriz africana, especialmente a santería e o Palo Monte. Quase todos os religiosos cubanos possuem múltiplas iniciações, não somente nas distintas reglas, mas em outras práticas, entre elas, budismo, reiki, maçonaria, rosa cruz, cavaleiros da luz.
Apesar das semelhanças com práticas religiosas no Brasil, tais como o candomblé e a umbanda, há em Cuba um aspecto que torna os cultos muito peculiares: a influência de marcantes acontecimentos políticos. Desde a Revolução Comunista de 1959, foram restringidas no país as práticas religiosas de qualquer natureza. Mais do que em outros cultos, nos ritos oriundos do continente africano as interdições foram muito sentidas, talvez porque sempre sofreram com estigmas, ou porque no comunismo não havia espaço para “superstições”, como postulou o Estado inúmeras vezes.
Mas o cubano sempre soube “dar a volta”. No fim das contas, a relação com o Sagrado se tornou tão imbricada ao dia a dia, que, em muitos casos, é difícil delimitar a linha sutil entre a vida profana e a religiosa. Em um local no qual as restrições são impostas tanto pela política quanto pelos embargos decorrentes desta, a palavra de ordem sempre tem sido recriar.
Em Cuba, por exemplo, não há a tradição de ter um lugar específico para os cultos, ao contrário do que acontece no Brasil, onde centros espíritas e barracões de candomblé existem aos montes. Quase todas as cerimônias são feitas no interior das casas. Assim, os deuses, espíritos e muertos convivem com a família.
Ao caminhar por Havana Velha, ouvimos soar tambores das janelas dos solares (espécie de cortiços, residências outrora luxuosas e que agora, desmanteladas pelo tempo e pelo sistema, encontram-se corroídas). Vendedores de flores estão a cada esquina, os hierberos (vendedores de ervas e plantas medicinais) têm sempre sua clientela. Os “yaôs” (iniciados na santería) estão por todas as ruas. Mulheres vestidas com saias de sete cores (as saias de Oyá) entram pelas igrejas católicas, pedem a benção a seu santo, colocam flores e acendem uma vela. Este trânsito delicado, de pequenos cheiros, cores e performances quase nunca é percebido pelos visitantes desavisados. Descortinar esta Cuba criativa, múltipla, é tão intrigante quanto surpreendente.
A mais oculta das reglas é a Conga ou Palo Monte, religião iniciática envolta em mistérios. Conhecido por ser uma crença que resolve problemas de forma rápida, por meio de bruxarias, o Palo é pouco difundido entre os turistas. É a religião dos “bruxos” por excelência.
A pessoa se inicia nessa prática por motivos variados: como pré-requisito para “fazer-se santo”, por problemas com a lei, para sair do país, para se prevenir de danos de bruxaria, por questões de saúde ou ainda por orientação de um muerto. Para os espiritistas dessa regla, o muerto é uma entidade fluida, sem raça, sexo ou cor.
No centro histórico da capital, subindo até o terceiro andar de um dos sobrados, nos deparamos com um culto do Palo Monte, dirigido por uma senhora e seu marido. O homem, descobrimos mais tarde, é iniciado em mais de uma regla, além de ser maçom e rosa cruz. Era uma tarde ensolarada, véspera de São Lázaro (ou Obaluyaiê).
Depois de iniciada a prática, a dona da casa incorpora um espírito. Mantendo-se de olhos fechados, suas mãos tremem, seus pés seguem o compasso das batidas das orações cantadas. Pouco a pouco, todo seu corpo começa a chacoalhar e, entre rugidos e espasmos, o espírito “se aproxima”. O ritmo é acelerado. São cantados hinos mais dinâmicos, parte da assistência bate palma, enquanto alguns outros gritam. A mulher se senta e saúda os vivos.
O ambiente é bastante efusivo, mas, assim que o espírito começa a se manifestar, a cumprimentar a assistência, todos se calam para ouvir seus conselhos. Não é somente a fala que vai dar início à personificação da entidade, senão toda a ambientação, traduzida em música, ritmo e cheiros. Através da sacerdotisa, o espírito se comunica com várias pessoas e, entre uma conversa e outra, entoam-se cantos.
Termina o culto. Os donos da casa nos servem pão com presunto, Tu-Kola (um refrigerante local parecido com Coca-Cola) e café. Antes disso, uma xícara de café, sem açúcar, foi colocada atrás da porta da sala, para os espíritos. Na saída, as pessoas comentam os preços abusivos da carne em Havana, a dificuldade de se conseguir DVDs virgens – e os sacerdotes insistem nas indicações de que devo me banhar com flores brancas, para limpeza espiritual. Entre vivos e mortos, seguimos pelas ruas de Havana.
Ana Stela Cunha | Antropóloga