Na Trilha do Cangaço
Vencedor do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia
Finalista do Prêmio Fundação Conrado Wessel de Arte 2010
Virgulino Ferreira da Silva, ou Lampião, Rei do Cangaço, nasceu em 1898 em Vila Bela, atual Serra Talhada, Pernambuco, e morreu na madrugada do dia 28 de julho de 1938, na fazenda conhecida como Angico, no município de Porto da Folha, em Sergipe. Passou metade de seus 40 anos no comando de seu bando de cangaceiros, com os quais percorreu os sertões de sete Estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, sendo os quatro primeiros banhados pelo Rio São Francisco. Justiceiro e herói para alguns e bandido sanguinário para outros, ele e sua companheira Maria Bonita constituem um mito que beira o religioso e se confunde com a lenda em todo o nordeste brasileiro.
A saga desse personagem polêmico da história brasileira é um dos episódios sociais mais instigantes da América do Sul. Nas últimas décadas surgiram, no Brasil, várias publicações de estudiosos do cangaço, que ora lhe dão uma aparência poética de justiceiro, de vindicatório do povo, ora o destacam como facínora.
Segundo o historiador Frederico Pernambucano de Melo, “Lampião era pai e marido amoroso, e se deve a ele a introdução no cangaço do ofício religioso coletivo, das mulheres em caráter permanente, da logística dos equipamentos e suprimentos bélicos, da guerra psicológica”, e de muitas outras artimanhas necessárias para a sobrevivência na caatinga. Grande dançarino, o cangaceiro organizava com os seus coiteiros ao menos dois bailes semanais. O traje do cangaceiro tinha apuro ornamental. Cheio de cores vivas e harmoniosas nos lenços bordados, nos bornais e frisos das cartucheiras e nas perneiras. Também usavam muito perfume e muitos anéis. O chapéu, em estilo napoleônico, era coroado de moedas de ouro e prata.
Perseguidos sem tréguas durante cerca de vinte anos pelas forças de ordem de sete Estados do nordeste brasileiro, Lampião e seus comandados desbravaram e pilharam uma das regiões mais pobres do Brasil: o Sertão. Desafiaram não apenas as autoridades policiais e políticas do nordeste, mas, também, o poder central do Brasil. Aqueles que poderiam ser personagens de pouca envergadura, cuja zona de influência e cujo poder de novidade pareciam restritos a uma região miserável, foram, em seu tempo, os reveladores das falhas de um sistema político, econômico e social, da incapacidade do Brasil de forjar sua unidade, numa época em que a sociedade se acreditava moderna, unificada e coerente.
Sob o comando de Lampião, o “Senhor do Sertão”, os cangaceiros assolaram a região de 1922 a 1938. Traído por um de seus companheiros, apanhado numa emboscada, Lampião, juntamente com sua mulher e nove de seus cangaceiros, encontraram a morte no dia 28 de julho de 1938. Todos foram decapitados, e suas cabeças transportadas de cidade em cidade e expostas em praças públicas, numa cuidadosa encenação.
Mas a morte desses homens, especialmente a de Lampião, foi contestada por boa parte da população do sertão, que acreditava – ainda hoje acredita – na invulnerabilidade de seus heróis. A poesia popular e as canções de gesta dos trovadores do nordeste apossaram-se desses personagens, exaltando sua bravura, seu destino trágico e seu senso de honra.
A FOTOGRAFIA NO CANGAÇO
Fato surpreendente para essa época, e em sua região onde a oralidade sempre predominou sobre o visual, os cangaceiros, assim como seus perseguidores, deixaram uma grande quantidade de documentos fotográficos, testemunhos indiscutíveis de um dos episódios mais violentos da história brasileira. Enquanto os predecessores ilustres de Lampião quase não deixaram registros, Lampião, durante todo o período em que dirigiu o cangaço e reinou sobre o sertão, fez questão de registrar, por meio de imagens fotográficas, alguns momentos fortes de sua vida.
Sob as roupas de Lampião, quando ele morreu, foi encontrada uma grande quantidade de fotografias. Algumas representavam pessoas mais próximas, outras representavam cangaceiros de seu grupo, mortos em combates precedentes; e, fato surpreendente, uma delas representava João Bezerra, seu assassino, como se Lampião tivesse carregado consigo o resumo de sua vida, desde sua juventude antes de entrar no cangaço, até sua morte anunciada, como se tivesse feito de seu corpo o suporte e o território de sua memória.
Em 1926, o Ceará vivia um clima de violência e de agitação política, causado pela Coluna Prestes. O Governo Federal apelou para os chefes políticos locais para defender cada região ameaçada, e criou milícias denominadas Batalhões Patrióticos. Aproveitando-se da notoriedade de Lampião, de seu conhecimento do terreno e da organização quase militar de seu grupo, chamou-o e incorporou-o a um de seus batalhões. As autoridades de Juazeiro prometeram-lhe a possibilidade de inserção na sociedade, e ele chegou a receber o título de Capitão – o que, evidentemente, não passava de uma mistificação. Nessa ocasião, ocorreu o encontro decisivo entre Lampião e Padre Cícero.
No dia 4 de Março de 1926, Lampião entrava em Juazeiro, impune, ovacionado como herói pela população local, recebido pelos notáveis da cidade como personalidade importante. Consta que mais de quatro mil pessoas teriam se deslocado para aclamar Lampião e seus 49 cangaceiros que, ao passar, distribuíram moedas, cartuchos e autógrafos à multidão, entoando “mulher rendeira”, seu hino de guerra.
Lauro Cabral, instalado em Barbalha, nas proximidades de Juazeiro, exercia a função de agrimensor e, paralelamente, a atividade de fotógrafo. Quando foi informado da chegada de Lampião e de seus homens à Barbalha, decidiu tirar fotografias “sensacionais”. Lauro Cabral propôs a Lampião fotografá-lo com seu grupo, o que muito surpreendeu o bandido. Ele insistiu, explicando-lhe que faria dele um homem célebre, distribuindo suas fotografias à imprensa de todo o Brasil.
As fotografias tiradas em Juazeiro são extremamente variadas. Algumas representam Lampião ao lado de seus irmãos e irmãs, alguns dos quais viviam em Juazeiro. Outras fotografias representam Lampião e seus cangaceiros em posição de combate apontando a arma para um adversário imaginário. As fotografias mais notáveis mostram Lampião trajando o uniforme dos Batalhões Patrióticos, porém usando o famoso lenço preso por um anel, o punhal e a bolsa bandoleira, que lembram que ele pertencia ao cangaço.
A estada de Lampião em Juazeiro, Ceará, em 1926, foi organizada pelo libanês Benjamin Abrahão.
A partir nos anos 1920, Benjamin se instalou, como comerciante, em Juazeiro, Ceará, e logo em seguida, tornou-se secretário particular de Padre Cícero. Foi coordenador de diversas audiências que o Rei do Cangaço concedeu a notáveis e personalidades da cidade, permitiu ao jornalista Otacílio Macedo entrevistar Lampião e organizou as sessões de pose com os fotógrafos Pedro Maia e Lauro Cabral. Nasceu nessa ocasião o projeto de fazer um filme documentário sobre Lampião.
A partir de 1934, Benjamin Abrahão exerce a função de coiteiro – fornecedor de armas e víveres. Faz muitas vezes o trajeto até Recife, com altas somas destinadas à compra de bebidas caras e munição e, em seguida, desaparece por um tempo no sertão. Essas atividades permitiram-lhe entrar, rapidamente, em contato com o grupo de Lampião e aprovisioná-lo. Tendo tecido laços de amizade com Lampião em Juazeiro, em 1926, não foi difícil ganhar a confiança do cangaceiro.
Após a morte de Padre Cícero, em 1934, Benjamin, desejando filmar e fotografar Lampião, aproxima-se de Ademar Albuquerque, negociante e proprietário da Abafilm – sociedade de difusão de filmes e de venda de material fotográfico e cinematográfico, instalada em Fortaleza. A sociedade Abafilm deveria ser encarregada da difusão do filme consagrado a Lampião em todo o Brasil e no exterior com o apoio da Zeiss – firma alemã de material fotográfico e óptico, instalada no Brasil desde 1920.
Mas, foi somente em 1936 que Benjamin Abrahão pôde concretizar seu desejo de filmar Lampião, após conseguir entrar em contato com ele por intermédio de José Cassis e outros coiteiros do grupo do cangaceiro. Esse filme em preto e branco e em 35 mm foi rodado na caatinga, de junho a outubro de 1936. Os cangaceiros foram filmados no ambiente em que viviam, em suma, em seu território. Por diversas temporadas no sertão, o cineasta viveu com o grupo de Lampião e filmou cenas da vida cotidiana destes.
O Diário de Pernambuco de 27 de setembro de 1926 publicou, em primeira mão, o testemunho de Benjamin Abrahão. Ele conta em que condições conseguiu encontrar Lampião, após uma espera de dezoito meses percorrendo os sertões da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e da Bahia, vivendo na caatinga e enfrentando diversos perigos. Em seu primeiro encontro, Lampião mostrou-se “homem de boas maneiras”, oferecendo-lhe uma refeição e conhaque. No entanto, o célebre cangaceiro continuava desconfiado, temendo uma armadilha ou uma traição.
Enquanto a imprensa do sertão evitava publicar comentários sobre esse personagem, na imprensa do litoral do nordeste e do sul do Brasil as reportagens sobre Benjamin Abrahão sucederam-se por vários meses, incluindo inúmeras fotografias, inicialmente acompanhadas de legendas curtas. Os primeiros artigos homenageavam o cineasta, sua bravura, seu senso de risco, e as fotografias pareciam estar lá para sustentar tais afirmações. Aos poucos, as legendas foram-se enriquecendo e tornaram-se verdadeiros comentários.
Vale a pena observar que Benjamin Abrahão fez questão de aparecer nessas fotografias em companhia dos heróis de sua reportagem. Sua presença lá está como uma assinatura, um certificado de autenticidade. A palavra pode ser posta em dúvida, mas a imagem é incontestável.
No entanto, como se a prova fotográfica não fosse suficiente, Benjamin Abrahão, por ocasião do primeiro artigo do Diário de Pernambuco consagrado à sua reportagem, datando de 27 de dezembro de 1936, declara possuir um certificado assinado por Lampião, atestando a sua presença ao seu lado:
“Ilmo Sr, Benjamin Abrahão
Saudações
Venho Ilhi afirmar que foi a primeira peçoa que conciguiu filmar eu com todos os meus peçoal cangaceiro, filmando asim todos us muvimento da noça vida nas catingas dus sertões nordistinos.
Outra peçoa não conciguiu nem conciguirá nem mesmo eu consintirei mais.
Sem mais do amigo
Virgulino Ferreira da Silva
Vulgo Capm Lampeão”
O certo é que o filme e as fotografias provocaram a irritação no Governo Federal e, em particular, ao Departamento de Imprensa e Propaganda. Finalmente, após a dura campanha do governo de Vargas contra seu filme, em pleno Estado Novo, e não podendo mais receber a proteção dos coronéis, também fragilizados, Benjamin Abrahão foi assassinado, em maio de 1938, em Águas Belas, atual Serra Talhada, em Pernambuco.
Uma das muitas explicações para o assassinato é que o cineasta, por intermédio de suas fotografias e de seu filme, havia feito de Lampião um personagem importante demais. No momento em que Getúlio Vargas exercia grande pressão sobre os chefes políticos locais, e esforçava-se para reduzir-lhes os privilégios, esse filme, que muitas vezes o comprometia, devia ser destruído. Era preciso, a qualquer preço, suprimir as provas de ligação entre a vida opulenta levada pelo grupo de cangaceiros e a corrupção dos poderes locais. Após a morte de Benjamin Abrahão, os rolos do filme foram apreendidos. Enquanto isso, os órgãos de imprensa apoderavam-se das fotografias, que passavam a representar provas incontestáveis da invulnerabilidade de Lampião.